quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

PONTA CABEÇA

imitando os deuses
começamos a rabiscar sonhos 

e a brincar
com o fogo

inventamos mentiras indecentes 

e fizemos desaparecer galáxias inteiras 
no photoshop

invertemos a posição 

dos órgãos

passamos a pensar
com o pé


virginia finzetto

domingo, 16 de dezembro de 2018

RESPONSABILIDADE

neste momento, peça a mim silêncio e reflexão. relevar as atitudes de certas amizades está mesmo além da minha imaginação, da qual fui muito abençoada. para quem apoia candidato que sempre elogiou seu herói torturador, no mínimo pede a mim em que ponto apoiei um equívoco para que agora eu não pudesse convencê-lo de outra escolha. e aí me vem o passado da anistia ampla e a pedra sobre todas as atrocidades e abusos que deixaram ditadura e reação, desobediência civil e organização democrática no mesmo patamar. ao contrário de um início sadio, hoje amargamos a continuidade da exceção, da violência com naturalidade assustadora, a olhos cegos de uma justiça corrupta. então, se eu fui responsável por isso, que esses que optam por essa situação sejam também responsabilizados. não há solução no relevar de mais nada, se somos adultos.

virginia finzetto

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

ESCRITO

o destino é aquela coisa reta e certa
como uma fieira de pião em curvas
cheia de nós aleatórios


virginia finzetto

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

INVOLUÇÃO

primeiro a língua
depois as mãos
os braços
o osso
a espada
a arma
e a conversa adiada

virginia finzetto

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

BRINCADEIRA DE CRIANÇA

e o vento deu uma força para as folhas atravessarem a rua correndo, 
cheias de alegria...

virginia finzetto

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

SE EU FOSSE VOCÊ

ah, se eu fosse você,
agora eu ficaria em silêncio 
atrás da cortina do palco 
esperando a turma que vai chegar
espiaria pelo buraco do esgarçado o desenrolar das cenas
combinaria truques, jogos, nós de laços
afagaria pelos, crinas, penachos
trocaria receitas, poções, abraços
ah, se eu fosse você,
agora eu desperdiçaria mais risos e menos estilhaços
ficaria repassando o refrão do coro
aguardando a hora de entrar e gritar

merda!


virginia finzetto

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

É DE MORRER, VIU...

- Alô...
- Bom dia, eu sou aqui de Atibaia...
- Ah, pois não – sentindo um sobressalto.
- Então, nós estamos com uma promoção aqui na cidade e a senhora foi escolhida por indicação do seu vizinho.
- Certo – já manifestando total desinteresse.
- Meu nome é Paulo e sou da funerária São Dimas do Atabaque y Corno.
- Como? – segurando o riso – não entendi...
- A senhora não é a única. O nome da funerária é assim mesmo.
- Ah... mas dá margem a outra interpretação – já relaxando na intimidade.
- Sim, e também prende a atenção de clientes bem humorados, como a senhora.
- Verdade... – e aí, aproveitei para esbanjar meu bom humor àquela hora da manhã –...seguinte, Paulo Corno, não estou mais na cidade e não tenho intere...
- Paulo... meu nome é Paulo. – respondeu bem sério.
- Desculpe, pensei que o bom humor não tivesse que ser exclusividade do cliente.
- Veja bem, dona, é uma oportunidade única. Vamos supor que a senhora volte a morar aqui ou esteja de passagem sozinha e tenha uma morte súbita, longe dos familiares...
- Paulo...
-... nós providenciaremos tudo, do contato com a família à liberação do corpo, funeral, caixão, flores, cerimônia religiosa, música tematizada...
- Paulo...
- ...se quiser ser cremada, as cinzas poderão ser espalhadas ao redor de uma das árvores do nosso catálogo, com seu nome e epitáfio em placa de madeira de reflorestamento, totalmente ecológica, fincada no jardim ao redor...
- Paulo...
- ...ou, se preferir, temos túmulo personalizado... Tudo isso em um parque planejado, paisagismo assinado por arquitetos renomados, sinalizado com comunicação visual moderna indicando as moradas entre alamedas e...
- Paulo... PAULO... NÃO tenho interesse! – já elevando a voz e manifestando todo o meu poder de síntese e determinação – Posso lhe garantir que ESSE é o ÚNICO assunto de casa 8 que tá resolvido!
- Não entendi...
- Deixa pra lá, piada interna. Muito grata pela atenção, tenha um bom dia! – desligando o celular.
E voltei a dormir.
Ainda bem que era feriado, dia de finados.

virginia finzetto

domingo, 21 de outubro de 2018

O MEDO DA CONFISSÃO

Adeleusa em seu leito de morte, rodeada pelos oito filhos. Adeliane, a mais velha, lésbica, escondia da família seu relacionamento de vinte anos, nutrindo sua felicidade em segredo enquanto segurava a mão e olhava com ternura o rosto sofrido da moribunda. Persiclon, o caçula, a fitava em lágrimas, pedindo perdão por ter feito parte de uma milícia de extermínio a quilombolas e homossexuais. Ele, filho de negro, acreditou que dessa maneira expurgaria todo o seu ódio que o fizeram acreditar ser contra o PT. Todos chorando quando veio a revelação: "O pai de vocês era gay!". Fechou os olhos e, desta vez, não por vontade própria, renunciada durante quarenta anos, abandonou a todos à própria sorte.

virginia finzetto

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O CÉU É O MAPA


o céu é o mapa, espelho da alma. não sei medir a dimensão de onde começa um e acaba o outro. talvez seja mais certo aceitar que o céu determina tudo se for ele mesmo sinônimo da alma. alheio ao desenho das verdades, o que insiste é um sentimento, ele que se debate em volteios procurando ditar o que não lhe cabe. não lhe cabe cabresto, não lhe cabe repressão, não lhe cabe ser mais machucado para diluir qualquer dor. não mudará um átomo na evolução dos astros. cabe-lhe vestir o abrigo do tempo invisível para atravessar as nebulosas desse firmamento. 


virginia finzetto

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

MITO

de mito em mito
um dia ele mata
o mote, o mato, a meta,
os outros e a si mesmo

virginia finzetto

precisamos falar sobre madame Deneuve


Por Virginia Finzetto

Em 1995 estreava na telona o filme Disclosure, do diretor norte-americano Barry Levinson, baseado no livro de mesmo título do escritor Michael Crichton. Embora classificado como suspense, muitos se enganaram com o sex appeal do casal protagonista nas imagens de divulgação da estreia e no apelo da tradução do título do filme no Brasil.
     Mas as cenas picantes – poucas – são meras coadjuvantes, nesse caso. Depois de tanto tempo não é mais spoiler lembrar que o tema central da história não fala de romance, cantada ou sedução. Trata-se de um caso de assédio sexual em uma hipotética empresa de informática na costa leste dos EUA.
     Para deixar claro que assédio nada tem a ver com sexo ou ser uma prática exclusiva dos homens, a escolha da figura feminina para representar esse papel foi bem inteligente. Jovem, bela e sexy mulher, a executiva Meredith Johnson (Demi Moore) usa de seu poder para forçar Tom Sanders (Michael Douglas), com quem ela já havia se envolvido no passado, a manter relações sexuais com ela.  Disputando o mesmo cargo pelo qual Johnson acabou ocupando, Sanders – casado e pai de família – recusa-se a entrar no jogo de sua atual chefe. Para se vingar, ela ameaça destruir a carreira dele como diretor de produção na empresa.
     O episódio vai parar na presidência, que tenta manipular um acordo entre os envolvidos, para abafar o caso e não prejudicar as negociações comerciais de sua fusão em andamento. Mas Sanders, recusando-se a aceitar a injusta pecha de tarado, busca orientação para provar sua inocência. O caso se espalha internamente, extrapola os limites da empresa e vai parar na justiça.
     Da fantasia à realidade, da tela aos estúdios, eis que assistimos no final do ano passado à onda de denúncias envolvendo o diretor de cinema norte-americano Harvey Weinstein. Contra ele pesa um número considerável de acusações de assédio sexual e estupro por atrizes do porte de Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow, para citar apenas dois exemplos.
     Vir a público uma história de assédio sexual, guardada em segredo durante anos, encorajou a abertura da caixa de Pandora. E, como efeito dominó, outros famosos, denunciados por abuso de poder, desfilaram no rastro dos holofotes revelando um subterrâneo nada romântico nos bastidores de Hollywood.
     O que não se esperava nessa programação de baixa fidelidade e alta audiência seria a interferência de um elemento incompatível, uma provocação batendo de frente à movediça crise revelada pela mídia.
     Do outro lado do Atlântico, misturando os fatos como quem prepara nitroglicerina com polpa de celulose[1], o Jornal Le Monde publica uma carta-aberta, elaborada por cem ilustres mulheres francesas, em resposta ao espocar das denúncias feitas pelas, por elas chamadas, “feministas norte-americanas”.
     Entre as signatárias do manifesto estão celebridades – atrizes, escritoras, pesquisadoras e jornalistas – como a atriz Catherine Deneuve – reivindicando o direito de “‘defender’ a ‘liberdade’ dos homens de ‘importunar’ e de ‘se opor’ à ‘onda de denúncias’ que surgiu após o escândalo Weinstein” e alegando que “o estupro é um crime, mas cortejar de forma insistente ou desajeitada não é um delito, assim como o galanteio não é uma agressão machista”.
     E assim, misturando alhos com bugalhos, após a explosão dessa carta-bomba, instaura-se uma confusão na mídia e nas redes sociais. Grupos se digladiando em discussões sem pé nem cabeça, tomando partido de um ou de outro lado... de dois assuntos completamente distintos colocados na mesma balança de julgamento.
     Será necessário desenhar que assédio, independentemente do gênero humano de quem o pratica, não diz respeito a sexo, cortejo, cantada, mas sim a poder?
     Voltemos a cena do filme Disclosure, na qual Catherine Alvarez (Roma Maffia), advogada de Sanders, interpela sua oponente após ouvirem a fita gravada com as provas da inocência de seu cliente:
– Srta Johnson, pode definir o que é sexo consensual?
– Sexo consensual é quando as duas partes concordam em participar.
– Quantas vezes ouviu o Sr Sanders dizer não, Srta Johnson?
– Não sei, eu estava mais preocupada em resolver o serviço.
– 31 vezes. Não quer dizer não. Não é o que as mulheres dizem? Os homens merecem menos? O fato é que você controlou o encontro, marcou a hora, trancou a porta, pediu o serviço e aí ficou furiosa quando ele não a atendeu. Decidiu se vingar. A única coisa que prova é que uma mulher no poder pode ser tão abusada quanto um homem.

     Uma coisa é cortejo, outra totalmente diferente é assédio. São distintos. Não se comparam e de maneira alguma são excludentes. Pode-se ser a favor do cortejo e contra o assédio, mas não se deveria questionar o justo rechaço ao assédio com argumentos que defenderiam apenas o cortejo.
     Ou poderíamos considerar falta de tolerância da parte das várias atrizes que tiveram de arrastar móveis para a porta de um quarto de hotel na tentativa de impedir a insistência alfa dos galanteios do senhor Weinstein?
     Em nome desse discernimento é que precisamos falar sobre Deneuve.
   Assédio é crime. Crianças, jovens e adultos, independentemente do gênero, qualquer pessoa pode sofrer esse tipo de abuso de poder. Fazer uma denúncia pública, nesse caso, exige que a vítima reúna muita coragem para superar o trauma e enfrentar todo o tipo de constrangimento quando os fatos se tornarem públicos. Além disso, deve reunir provas suficientes para conseguir que o criminoso seja levado à justiça.
    Uma tarefa nada fácil, pois o autor do abuso tem poder suficiente para ameaçar e obrigar sua vítima ao silêncio e fazê-la desistir, já que ninguém acreditaria em sua história.
     Portanto, não se pode comparar assédio com casos de paqueras insistentes, em que parte-se do princípio que até estas devem ter um limite. Em nome do apelo a "uma liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual" para os homens, teria sido justo incluir o apoio à liberdade de qualquer pessoa recusar um envolvimento.
     Madame Deneuve, com o devido respeito pela sua brilhante carreira de atriz, mas, mesmo depois de todo esclarecimento sobre pontos que obviamente não haviam ficado explícitos, como seu pedido de desculpas às vítimas de assédio e de estupro, se a sua intenção ao assinar o manifesto fosse dourar a flecha do cupido, creio que errou feio o alvo.
     À luz desse “eclipse oculto”, só invocando Caetano Veloso: “como se o coração tivesse antes que optar entre o inseto e o inseticida”.
                                        



1 – A nitroglicerina, substância líquida instável, em pequenas proporções, é um vasodilatador que pode salvar vidas, mas, quando em quantidade maior misturada com polpa de celulose, resulta na dinamite. Em condições garantidas, cada um desses elementos separados não oferece perigo de explosão.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

DOMINÓ PRA DOMINÁ

os poderosos que dividem entre si o ouro do mundo compram traíras nos paraísos vizinhos para que comprem com 40 moedas de ouro os traíras dos seus que acenam com o ouro de tolo e o falso brilho da moral para os ignorantes que soterrados sob todas as peças do jogo ainda estendem a mão pedindo ajuda ao falso herói que jogará sobre eles a última pá de cal.

virginia finzetto

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

COBIÇA

vou
fazer um
poeminha
de amor
pra você
que não
é meu


vai se fudê
seu grande
merdinha...
onde foi
que você
se meteu?

virginia finzetto

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

INDOMÁVEIS

completamente alheia, melissa dorme na minha cama. parte dela está na nesga de sol que entra pela janela, enquanto sua cabeça repousa sobre uma pata dianteira, a outra, por baixo do corpo, aparece e se move em pequenos espasmos. estaria ela sonhando ou seria reflexo mecânico da pressão ocasionada pelo relaxar de seu corpo? a ponta da língua, da espessura de um papel, repousa imóvel entre os dentes de sua pequena boca entreaberta. é de uma entrega invejável essa felina. alheia como o tempo que atropela a tudo sem parar e sem nenhuma pré-intenção, eles seguem um curso incompreensível aos humanos, que treinam, em vão, querer dominar a ambos. mais do que com a gata, quero competir com o tempo, antecipar-me à catástrofe de não conseguir conhecer partes do mundo antes de a próxima guerra estourar. mas para além daquelas dunas, seja do deserto ou de qualquer praia distante, temo que me aguardará uma barraquinha de artigos chineses. 

virginia finzetto

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

CLAUSURA

ateísmo que enclausura
algema a liberdade
tanto quanto pastores e curas
pregam o seu fim
do centro ao arrabalde


que compartilhem entre si seus pastos


pois o que almejo é de alcançável altura
além dos pregos de toda cruz e usura
é minha tangível imaterialidade


virginia finzetto

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

ENQUANTO

na cuba da pia havia um copo, que se enchia todo dia, mas ela não via. nada vazava, a torneira estava bem fechada. então qual seria o mistério? ficou ali observando e nada de anormal acontecia. resolveu ficar de prontidão. esvaziou o copo e o colocou no mesmo lugar. por um bom tempo concentrou-se nessa vigília. quando se deu conta, havia perdido ali um dia inteiro. no interior do copo havia água. como podia? nesse momento ela não piscou e um pingo caiu. aí ela compreendeu o sentido das palavras 'enquanto' e 'sincronia'. alguns milagres são não tão sobrenaturais assim...  

virginia finzetto

terça-feira, 31 de julho de 2018

EPÍLOGO

...terminar a leitura de um livro, que a arrebatou perdidamente, é como aterrissar, após um período atemporal fora do seu mundo, e se arrepender de ter voltado antes mesmo de sair do aeroporto...

virginia finzetto

sábado, 21 de julho de 2018

MARCADORES DE LIVRO

enquanto observava pela janela o voo planador e suave da paloma branca, Ana pensou como seria o pleno vigor da vida utópica em que os seres não mais precisariam disputar entre si ou esconder algo, qualquer, de quem quer que fosse. haveria uma revolução pelo menos quanto à temática dos romances ou apenas arriscariam alguma escrita nessa direção os que tivessem uma boa memória ou o resquício de antiga imaginação capaz de registrar sentimentos que pudessem transmitir veracidade a esse tempo, desconhecido da maioria da humanidade, que ficara para trás? senão isso, que tipo de literatura seria praticada em um mundo sem conflitos no qual homens e anjos agora confraternizavam anseios sem trocar uma palavra sequer? quem ou que grupo promoveria uma censura diante da probabilidade do ressurgimento do príncipe das trevas, que, sabiam, habitando o mais secreto do silêncio de cada um, nunca havia morrido. o marcador da livraria San Ginés, presente de Juan, interrompia aquela leitura ao final de mais um capítulo. no verso ainda estava gravado o telefone de sua amiga. ela, que sofrera tanto por carregar as angústias de uma vida submissa a um marido machista. este, que se dividia entre todos os prostíbulos da cidade plantando sementes em ventres inférteis, enquanto exigia dela que aceitasse a monocultura que devastara sua flora virginal durante trinta anos sem gerar um fruto. preciso de sol! - pensou -  andar pelas calles, ir ao Arenal, visitar a igreja e depois fazer compras e comer um pincho de tortilla na Fuencarral. 

virginia finzetto

quarta-feira, 18 de julho de 2018

PNEUMÁTICA

outro dia eu engoli um espelho
queria que minha dor se visse ali, cara a cara
para que depois pudesse se traduzir
ao mundo guiado pelas aparências
no íntimo, nós nos entendemos
pneumática, ora alojada na boca do estômago,
ora agarrada às minhas costelas flutuantes
vez ou outra, ela desaparece
na troca com o ambiente, disfarçada de alegria
em alguma distração

virginia finzetto

quinta-feira, 12 de julho de 2018

terça-feira, 10 de julho de 2018

sábado, 7 de julho de 2018

NAS HORAS

nas horas em que não estou de acordo comigo, eu viro minha cara para um lado e o outro lado vira a cara pra mim...

nas horas de descompasso, não há música, não há dança, só um atropelo de pensamentos tolos, tipo assim...

nas horas em que eu não sou quem sou, meio ausente, meio minha, meio de ninguém, é que eu me encontro, enfim.


virginia finzetto


MELISSA MEL

o normal das aves é voar
dos gatos, dormir
só de vez em quando as aves dormem
já os gatos voam sempre

virginia fInzetto

quarta-feira, 20 de junho de 2018

SECO E QUENTE

preciso me acostumar a escrever sob qualquer condição, pensara minutos antes. não havia papel e grafite disponíveis quando veio a notícia urgente de que uma grande tempestade de areia os atingiria em breve. rapidamente, procurar abrigo era o que importava. ficaria o registro para depois, embora fosse difícil manter qualquer ideia conexa durante esse fenômeno. lembrou dos desequilíbrios que tivera em alguns levantes em Andaluzia. ainda que passageiros, os ventos secos e quentes que vinham do Saara a perturbavam de maneira impiedosa. Ana percebia que seus líquidos eram sacudidos com a mesma intensidade e violência com que as águas do mar chacoalhavam nessas ocasiões, sinalizando internamente difíceis travessias. agora, em pleno deserto, estava a um passo de experimentar o impacto de outra forte natureza sobre sua frágil fortaleza. por dias, o céu e a terra se fundiriam em um imenso véu amarronzado. sem refúgio, perde-se a noção do horizonte, das referências de se estar no mundo e pode-se até enlouquecer. enquanto era levada para dentro da tenda do acampamento, sua pequena e macia mão experimentou a proteção familiar dos dedos desidratados de Juan. ali abrigados, ele a abraçava sempre da mesma maneira que fazia em tempos de tormenta. assim protegida, ela fechava os olhos e se entregava à calma de contar as batidas do coração do amado, até adormecer.

virginia finzetto

terça-feira, 19 de junho de 2018

O BLUES DELA É VERMELHO

Acabava com a caixa de lenços de papel, enxugando lágrimas de tristeza e coriza ao mesmo tempo, enquanto tudo era abafado pelo barulho das máquinas de escrever e dos ramais que não paravam de tocar. Naômi viajava em seus pensamentos: “mais este plantão interminável com a editora-nariz-chefe-empinado ... vontade de sumir, sair desta maldita gripe e deste emprego... tô pelas tampas, não aguento mais esta merda...”. Deu uma olhada na última pauta do dia: entrevistar o velho mestre Assad: “O senhor aprecia mortadela?”. Pepinos destinados apenas à repórter ralé, matéria por telefone, piada: a fanha entrevistando o outro que não ouvia. Mas fez, não sem escapar das gargalhadas a cada pergunta que berrava sobre o embutido gourmet. 
  “Por hoje chega”, pensou, “que não venha mais nada...”.
  Toca o telefone e todos fingem ignorar. Naômi vai atender quase se arrastando:
  — Redação, boa noite.
  — Boa noite, meu nome é Ney... queria passar uma nota sobre o Mautner para o caderno de espetáculos...
Enquanto Naômi anotava tudo mecanicamente, pensava naquele nome e na voz que não lhe era estranha. No final, arriscou:
  — Ney... Ney Rama? 
  — Sim...
  — Oi, sou Naômi Medeiros... 
  Bastou ouvir o nome para que ele se abrisse em surpresas. Entre as lembranças, um convite. Na semana seguinte um café, e depois muitos outros.
  O país atravessava uma crise e ninguém acreditava mais no governo sequestrador de poupanças. Grana escassa, salários aviltados. Sem um puto para se mudar de um pequeno apê de quarto e sala que teve de voltar a dividir com os pais, Naômi não reclamava de ter gastado suas economias naquela viagem. O lugar, portanto, não importava, pois nada poderia ser mais blues do que sua rubra personalidade encarnada. Perfeita draga a devorar tudo em suas entranhas em chamas. Gostava mesmo de topar com almas torturadas, obcecadas e pessoas loucas, e também de atrair homens que falassem seu idioma, o mesmo para traduzir a idiotice que é obedecer a regras e sofrer de esperança. Não, ela não fora talhada para isso. Desconfiava de tudo, desde que nascera. Sua alma só conseguia aportar em nostalgias de lugares por ela inventados, da lembrança de um paraíso perdido que sequer tinha certeza de sua existência, mas que já havia lido em livros de esoterismo, não desses que ficam largados na mesa da recepção de consultórios, todo rabiscado e faltando páginas. Não era dessa fonte que ela bebia. Sua busca abdicava de turismo, coisa de que ela passou longe no tempo em que esteve fora do país e do ar, mergulhada em autodescobertas, enquanto lambia feridas e colava cacos de sua vida destroçada pela dor dos lutos, de morte a descasamento. 
  Ney atualizara seu passado com Naômi em tórridos encontros. “Como era bom poder escapar de vez em quando para aquele refúgio face norte, tão quentinho no inverno polar de Sampa.” Uma dádiva para quem já não sabia mais o que era intimidade amorosa desde que havia voltado ao Brasil. Devolveram-lhe tesão, afeto e consolo com juros, além de juras e de uma leitura da alma, dessas que não se consegue proteger qualquer segredo de quem já lhe penetrara por inteiro. “Tipo de encontro alquímico: nada se perde, tudo se solve”, definia para si mesma, sem nenhuma certeza do que isso significava.
  A cada três finais de semana trabalhados, Naômi desfrutava um de descanso. Mas não naquela fatídica data da morte da atriz. Convocaram-na para cobrir o acidente do bateau mouche na baía da Guanabara. Para sua surpresa, já que nunca era chamada para nada fora do jornal, muito menos da cidade. Lá se foram sua folga de final de ano e o bota-fora do Ney.
   Mas o destino novamente colaborou, colocando ambos no mesmo voo. Para ela, ponte área, para ele, conexão. Ela ficou no Rio, ele seguiu em outro avião. E quase trocaram as mochilas, entre abraços emocionados e o beijo da derradeira despedida.
Dele, ela alugou a kit, herdou o LP dos Beatles, um livro de poesia, o mezanino de madeira, marcas de amor no colchão e a imensa alegria de voltar a ter seu cantinho. Dela, ele levou um coração envolto em mata-borrão, que era para que o sangue da ruptura não deixasse pistas em sua repentina decisão de retornar para a mulher e os filhos.
  Naômi chegou tarde da noite e foi direto para a redação, deixou a matéria sobre a mesa da chefa e pediu as contas. Haveria de se manter de outra maneira, qualquer uma que pudesse substituir tanta perda por qualquer ganho de melhor remuneração. Dali em diante, estava valendo qualquer risco.

virginia finzetto

[conto, in revista Scenarium Plural, Me deixe a sós com meu mundo blues, julho de 2017]

segunda-feira, 18 de junho de 2018

AVE, LOUCAS NOITES!

No quesito visão, as aves de rapina estão no topo da excelência e, nessa espécie, quando se trata de enxergar na escuridão, destaca-se a coruja. Seus olhos de telescópio aproximam qualquer alvo, mesmo em noites sem luar.
   — Ah, que inveja desses irmãos!

  Hoje, com minha visão deficiente, não aprecio ambientes de pouca luz.
   Mas sempre foi assim?

   — Claro que não!
  Quando criança, eu identificava pé de maracujá nascendo em mata fechada a muitos metros de distância. E à noite, quando me deitava na rua de terra sem movimento de carros e nenhuma iluminação, era capaz de acompanhar extasiada a elíptica dos planetas visíveis a olho nu subindo e descendo no horizonte, tendo ao fundo o braço nebuloso da via Láctea atravessando as constelações.
  Sentia uma especial sintonia com o entardecer e a existência na escuridão. Depois que o sol se punha, em mim se abria um mundo de sensações misteriosas, que nasciam com o silenciar do dia. Criaturas noturnas vinham me fazer companhia, mas logo se recolhiam, bem antes da meia-noite. Era o cansaço das brincadeiras diurnas que vinha render meu corpo, pois durante a semana eu tinha de ir à escola logo ao raiar do dia.
 Minha atração pela madrugada e a capacidade em me manter acordada crescia proporcionalmente à minha idade. No auge da juventude, era capaz de virar noites seguidas. Passeios noturnos à Cidade Universitária ou ao Parque do Ibirapuera eram frequentes, durante os quais acabávamos adormecidos em cama fofa de folhas secas quando chegava a manhãzinha. Contrapondo-se a esses momentos de silêncio, revezavam-se as noitadas nos botecos boêmios, os “sem porta”, assim chamados por não terem horário para fechar.
 No entanto, com o outono da vida, sinto que estou voltando a ser menina. Das corujas quero apenas a sabedoria, já que hoje adormeço e acordo mesmo é com as galinhas.

virginia finzetto


[crônica, revista Scenarium Plural, Wild NIghts, homenageando Emily Dickinson, 2017]

quinta-feira, 14 de junho de 2018

13 DE JUNHO

querido antônio, não fostes santo à toa. que idiotice a minha ficar te amolando por longos 12 anos. essa coisa de virar tua imagem de ponta-cabeça com objetivos tão falsos, chamar de simpatia a uma tortura dessas, atribuir à tua graça meu vexame de não ter sequer empatia com uma causa já sabida desde sempre como capricho no mau sentido, como uma birra. sabe, querido, ontem resolvi desenterrar todos os bonecos de gesso à tua imagem e algumas semelhanças. é que a cada ano eu adquiria um deles em lugares diferentes. hoje, com orgulho, exibo minha coleção sem ter repetido um sequer. penso que ela deva valer uma nota no mercado livre. o modelo 2018 nem cheguei a virá-lo. coloquei-o sobre a mesa e, juntos, tomamos esta decisão: 12 apóstolos, 12 meses, 12 anos, 12 signos, 12 casas do zodíaco... finalmente, percorri a roda, um ciclo inteiro, e sobrevivi feliz, sem me casar. obrigada, isso sim é que é milagre! 

virginia finzetto

domingo, 3 de junho de 2018

NECROTÉRIO



não quero mais ficar aqui, respirando esta atmosfera. Ana caminhou lentamente com sua bolsa à tiracolo até a saída daquele necrotério. todos ali estavam mortos e petrificados em estátuas sem autorias. deixando para trás, identificara e etiquetara cada cadáver de si mesma. sua alma congelada era um escudo para evitar que seu coração se liquefizesse, como a torre que protegeu a rainha naquele último jogo de xadrez em que tentou a sorte. agora não poderia mais fingir que não tinha conhecimento dos abusos, das respostas atravessadas que dera sem pensar, dos minutos que poderia ter ofertado para ouvir atentamente o pedido de socorro tão profundamente calado naquele olhar. fora leviana querendo promulgar conselhos, fórmulas, qualquer veredito a quem só pedia um abraço.


virginia finzetto

GENUFLEXÓRIO

chega, contaram só mentiras. você não virá "numa manhã de domingo". no dia do seu culto eu vou abrir a porteira para as ovelhas pastarem livres no campo em companhia de um border collie, deveras mais fiel que esse pastoreco de presépio. de seu templo de ouro escorre sangue da vitimização dos escravos cegos pela trilha da mesma fumaça nos céus que saem destes incensórios. sofrimento algum conduz ao Reino. pare de me importunar com suas crendices. me deixa arder do cadinho do inferno, meu batismo é de fogo. Ana, limpando as lágrimas, se esforçava para levantar seu corpo dormente, quando avistou uma carteira perdida no vão do genuflexório.

virginia finzetto

sábado, 26 de maio de 2018

DAS CORES QUE NÃO ME REPRESENTAM MAIS

preciso de um par de chinelo 
vi no super um verde e amarelo
e quase vomitei... 
tenho mais coragem não 
de usar essa merda
mancharam as cores da bandeira
com sangue de inocentes
e da miséria que deixaram
torça para a Copa e vá você 
tomar no seu baixo refrão
quero o meu país de volta,
seu ladrão!

virginia finzetto

quarta-feira, 16 de maio de 2018

ARECIBO E ATACAMA

não estava certa de uma causa para subir no ponto mais alto e isolado do edifício e conseguir se concentrar. pensava que talvez fosse como as antenas, parte de um "seti", conectando-se ao cosmos em busca de novos pulsares da "alma" na aridez de seu deserto. uma ilha no salar e lá estava ela a fustigar reminiscências. lembrou de sua declaração de amor à lhama e seu riso frouxo ao receber uma cusparada como resposta. nem sempre riu quando foi frequentemente assim tratada pelos humanos. agora não fazia nenhuma diferença. de fato, não atraía mais corretivos desse tipo para suas fraquezas. trocou correntes e âncoras por balões de hélio. transmutou rancores em vapores. e sua nau atravessou o espaço ao som dos espasmos internos, no compasso da dança entre fluidos e gases... 

virginia finzetto

quarta-feira, 9 de maio de 2018

MEDITERRÂNEO

às vésperas de seu retorno à Gibraltar, caiu um atípico e intenso temporal no lado marroquino do mediterrâneo. o fato soou como um aviso dos deuses à decisão de Ana em abandonar suas buscas por Juan. da janela do quarto da modesta pensão, ficou imaginando como seria se tivesse que passar pela experiência de viver prisioneira. não bastava ter que se conformar como hóspede de um corpo, uma reclusão forçada seria uma violência contra sua alma que tanto lutara para aprender a ser livre. a noite se aproximava e nenhuma notícia de que o clima adverso poderia se acalmar em breve. todos os ferries estavam suspensos. resignou-se em se espelhar no exemplo daquela água que escorria pela vidraça, moldando de várias formas sua existência entre o céu e a terra, aceitando ser o que era naquele momento. logo se distraiu pensando sobre as coisas fora de uma ordem lógica como era a espanha marroquina e a inglaterra andaluza. acendeu a luz do abajur e voltou a fazer suas anotações sobre a ponte traçada entre os dois destinos, sem adivinhar a surpresa que iria ter no jantar... 

virginia finzetto

segunda-feira, 7 de maio de 2018

MAGREBE

de passagem por Iguelmimene, ela lembrou que o povoado tinha menos de 10 mil habitantes quando o conhecera. no final daquela década, um mundo inóspito revelou valores tão distintos dos seus, que nenhuma descrição de civilizações além do planeta poderia causar tanto impacto quanto o que ela havia experimentado ali. veio-lhe a memória de todos funcionando como um só organismo, cujas células não reivindicavam fama exclusiva para si. os berberes, que sempre se mantiveram em festas para preservar sua cultura frente à dominação dos fundamentalistas, mostravam os sinais da verdadeira resistência. naquela visita, ela e Juan, constantemente sob o olhar complacente dos que não compreendem quão fragmentado foi se tornando o magrebe, destacavam-se como feridas expostas no deserto. talvez eles se preocupassem pela sobrevivência dos que adotaram a individualidade. assim que o jipe deixou para trás as muralhas escaldantes do ksar, Ana tirou da bolsa o mesmo porta-kohl que comprara em Tânger, há 30 anos, e lembrou da última vez em que Juan acariciara seus olhos. chorou... chorou muito sua nostalgia, mas distraiu-se com as tâmaras oferecidas pelo guia. a viagem de retorno seria longa e certos caminhos jamais deixariam de existir... 

virginia finzetto


imagem: wikipedia. fotografia da década de 1930 mostrando o exército francês na entrada do Ksar Goulmima, Marrocos.

domingo, 6 de maio de 2018

FIRMAMENTO

sem a luz, tudo se mostra outra coisa. a madrepérola verdadeira de abalone, que não reflete seu verniz iridescente à noite, guarda as proporções do que ela estava sentindo ao olhar aquele céu. era de dia que se podia pensar no mar de estrelas fixas a comandar os destinos, mesmo sendo ele apenas aparentemente inexistente. lembrou da primeira vez em que estivera no Saara e não havia deslocamentos de luzes na Via Láctea. a corrida espacial apenas começara e era praticamente impossível uma disputa de satélites orbitando a Terra. agora, ficava em dúvida sobre a realidade dos luminares, o sentido do que verdadeiramente brilhava e o engano das artificialidades a iludir os sentidos. viu a estrela Polar e pensou que a ninguém havia sido negada uma pista. algumas são percebidas de olhos fechados... 

virginia finzetto

sexta-feira, 4 de maio de 2018

DESERTO

desde o dia em que descobrira que seus desejos eram atendidos, ela passou a pensar menos em si. não havia premeditado mérito nessa atitude, não havia pressuposto ganho pessoal, não havia sequer um motivo nobre. apenas uma súbita visão acontecera certa manhã e ela soube que parte importante do mundo precisava estar resolvida, para que ela voltasse a sorrir de verdade. tinha uma pitada egoica à solidariedade que brotara espontaneamente. entre feridos e moscas, milagres de cura realizavam-se diariamente. a 500 quilômetros de Rabat, a provisão de recursos não era suficiente para aplacar a epidemia por mais uma semana. a toda hora, lembrava-se de que estar viva dependia mais dessa força do que da vacina que se recusara a tomar. à noite, quando a temperatura caía muitos graus, o acampamento silenciava e ela, envolta em pesadas túnicas de lã, admirava as estrelas. seu camelo amarrado, sua alma voava. 

virginia finzetto

quinta-feira, 3 de maio de 2018

MARGINAIS

a rachadura da calçada era um precipício que separava famílias vizinhas de bichinhos. quando chovia, barquinhos de sujeira passavam ligeiros com os pequenos dos dois lados vibrando de alegria. as mães, às margens, jogavam os bracinhos arrepiados aos céus esbravejando contra as peraltices de suas crias. mas ali não havia mais nada, a não ser aquela veia aberta que às vezes fingia unir em um rio uma grande população.

virginia finzetto

quinta-feira, 26 de abril de 2018

A REPÚBLICA DE TODOS NÓS

Naquele sábado, Ana descia a Rua da Consolação, apressada para o ensaio. Antes de atravessá-la, um rapaz, que parara ao seu lado, também aguardando fechar o semáforo, puxou conversa. Perguntou se o teatro de Arena ficava no início ou no final da rua. Resgatada repentinamente de suas lembranças, ela espontaneamente abriu um sorriso e respondeu que estava indo para lá. O rapaz apresentou-se como Sergio e comentou estar atrasado para encontrar um amigo que o convidara a fazer o teste para substituir um dos atores na peça Doce América, Latino América.
Ana imediatamente se mostrou interessada em ajudá-lo, pois conhecia Antônio Pedro, o diretor do novo grupo que se apresentava ali, depois que prenderam Augusto Boal. Veio-lhe à mente as notícias que circulavam à época em que Boal fora levado pela polícia e torturado na prisão, antes de seu exílio. Por bem, preferiu se calar, pois não queria se expor àquele desconhecido sobre esses assuntos.
Lado a lado, ambos seguiram o trajeto, em curtos diálogos sem relevância.
Porém, ao chegar ao teatro, não havia pessoa alguma esperando por Sergio. Sem mostrar nenhum desagrado, ele disse que ficaria por ali e aproveitaria para vê-la ensaiar, enquanto o amigo não chegasse. Amigo esse que não apareceu.
Ana logo pensou que havia caído na cantada de um desconhecido, mas procurou se dedicar de corpo e alma ao ensaio, sem demonstrar seu interesse. Ao término, foi ao camarim pegar suas coisas e, ao se despedir dele, alegou que precisava se apressar na caminhada até a Avenida São João, onde pegaria o ônibus. Ele sorriu e pediu para acompanhá-la, pois ficaria na Praça da República. Ela até que gostou dessa paquera.
Mas, durante o trajeto, repentinamente Sergio desatou a falar abertamente sobre a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia, as células que recrutavam jovens combativas e ousadas “como você”  disse-lhe olhando-a firmemente nos olhos , para atuarem na resistência e coisa e tal.  Demonstrando domínio sobre o assunto, citou Lênin e Trotsky e completou sua fala louvando a Revolução Cubana.
Enquanto ele falava, Ana foi ficando ressabiada. Aquele discurso tinha cara de ter sido planejado, decorado. Não demorou muito para ela perceber a situação em que se metera. Sua intuição dizia para se fazer de alienada.
Então, com meias palavras, ela foi despistando o rapaz com perguntas idiotas, evitando mostrar qualquer conhecimento profundo sobre política. Seus pensamentos eram relâmpagos cruzando sua mente em todas as direções. Desconfiada, concluiu: “Esse homem já está na minha mira e não é de hoje... ele é um agente da polícia e está me investigando”. Gelou!
Embora não estivesse comprometida com nenhuma organização clandestina, Ana era contra o regime militar. Sabia de casos de inocentes úteis e ‘laranjas’ presos por engano. Pressentiu que deveria tomar uma atitude urgente, dar um jeito de se livrar dele sem levantar suspeitas.
Sergio foi apertando o cerco, convidando-a para uma dessas reuniões que ele dizia conhecer. Apesar de sua pronta recusa, ele insistia no assédio.
Alguns passos mais e Ana começou a suar frio, quando viu uma Veraneio C14 cinza estacionada em local proibido, exatamente para onde eles estavam se dirigindo.
“Ai, meu Jesus, por que eu fui brigar com a igreja e não acreditar em você? ... Por favor, senhor meu Deus me ajude...”, orou sentindo suas mãos úmidas de medo.
Ela pensou em seus pais, seus irmãos, sua amiga do grupo de teatro que a vira saindo em companhia de um desconhecido...
“Pronto, é uma armadilha... Eles vão me sequestrar e ninguém vai ficar sabendo o que me aconteceu... Pensa rápido, pensa rápido, pensa rápido Ana...”. 
Quando estavam quase em frente à Praça lotada, como era comum nos finais de semana, Ana fingiu tropeçar e, de propósito, se atirou ao chão. Na queda, ralou o joelho, a mão e o cotovelo, arrancando-lhe um grito verdadeiro de dor. Sérgio tentou acudi-la, mas ela se recusou a levantar. Permaneceu sentada na calçada, gritando cada vez mais alto. Com isso, conseguiu atrair a atenção das pessoas, que foram se agrupando ao seu redor. Fingindo uma dor absurda, ela desatou a chorar, como se tivesse fraturado alguma parte sua.
Quanto mais gente se aproximava, mais Sergio se afastava para a periferia da roda que se formara. Então, fazendo jus à atriz talentosa que era, Ana completou a cena com um ataque de nervos. Aos berros, foi inventando um monte de mentiras: “eu quero o meu pai... ele é da polícia... preciso que ele venha aqui com urgência...”.
As pessoas ali se ofereceriam para levá-la ao pronto-socorro, mas ela queria que fossem até o teatro chamar sua amiga e a diretora da peça infantil na qual participava. Só sairia dali em companhia das duas. Mal terminara de falar isso, ela se arrependeu, pois Sergio poderia suspeitar das outras também. E aí, sim, ela chorou de verdade.
Naquele momento, uma mulher se apresentou como enfermeira e pediu que todos se afastassem, alegando que Ana estava em estado de choque. Disse que ficaria ali com ela, enquanto alguém correria até o teatro para avisar o que acontecera.
Dando graças à providência divina pela aparição daquele anjo, Ana disfarçadamente olhou ao redor.
Sergio já não estava mais ali, nem a viatura C14 lá estacionada.
Logo chegaram a diretora e sua amiga e, aos poucos, todos foram se dispersando.
Aliviada, Ana se levantou, limpou do rosto as últimas lágrimas e suspirou...
Sua República voltara a brilhar naquela tarde ensolarada, desafiando o cinza-escuro da ditadura. A transgressora Praça da República dos Meus Sonhos, do grande poeta maldito Roberto Piva, o poema-oração que ela escolhera para declamar ali em silêncio:

                “A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo
e crianças brincando na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas...”

Por muito tempo Ana se recordaria de cada detalhe desse episódio, sem chegar a uma conclusão sobre o repentino sumiço do rapaz: “Seria ele um rato infiltrado ou um contato de verdade tentando me recrutar?”.
Jamais ficaria sabendo a resposta. Da mesma maneira que veio, Sergio desapareceu sem deixar rastro.

Era verão de 1972.  

Virginia Finzetto

sexta-feira, 20 de abril de 2018

GUERRA HÍBRIDA

não há surpresas abaixo da linha do equador
o canto da natureza não anuncia mais as estações
o outono está preso, atado ao pau seco
sofrendo pela triste primavera deflorada que não virá
a mão da praga ordena a retirada de seus brotos 
ainda em seu ventre
enquanto o galo tenta recordar em que hora deve cantar 
olhando tristemente para o galinheiro 
que choca ovos que não são seus

virginia finzetto

terça-feira, 17 de abril de 2018

OUÇO


sílabas balbuciadas interrompem
o sal do meu choro
para indagar a deus
se minha dor é não aceitar seus motivos

mas ouço do misericordioso
que eu não sei o que é deus
muito menos o que são motivos

então volto a brigar com os homens
que penso terem a resposta
de que os motivos partem daqueles
que perderam o coração
certos de que servem a deus

mas ouço do misericordioso
que eles não sabem o que é deus
muito menos o que são motivos

virginia finzetto

sábado, 14 de abril de 2018

BARCELONA

o álbum de fotos está guardado em qualquer caixa entre talheres e louças embrulhadas na última mudança. tê-lo em mãos não faz diferença neste momento. logo apresso-me em abrir o livro que, não por acaso, continua no topo da pilha. na página marcada, vejo-me sentada no banco da estação em que desci na última parada, todas as letras a me convidar. embarco nessa leitura misturando o calor da xícara de café com um pouco de tontura. estaremos sempre em Montjuic, abraçados dentro da cabine do teleférico. lembranças agora jorram e ricocheteiam meus flancos tirando-me o ar. preciso descer e vomitar, não consigo prosseguir viagem. a memória que me arrebata esfola, bate, fustiga e não me trará você de volta nunca mais. 

virginia fInzetto

crédito da imagem: Teleferic.1931 Port-Montjuich. Barcelona - https://br.pinterest.com/agomezgine/montjuic-i-el-poble-sec/

segunda-feira, 2 de abril de 2018

TEMPO

afago, dinheiro, informação... Ana seguia pensando em tudo o que poderiam lhe arrancar. algumas coisas, até sem muito esforço, acabaram indo embora por si, porque não tinham importância ou valor às quais ela quisesse se apegar. por ingenuidade, muitos assaltos e sobressaltos lhe aconteceram, no corpo e na alma. no entanto, ninguém lhe roubaria o tempo. desde muito cedo aprendera a controlá-lo. era criança quando indagou em público quem o teria inventado, pois o sentia armazenável, codificável, palpável como sentia o vento, a chuva ou qualquer outro fenômeno que podia apreciar com os sentidos. só depois descobrira que seu sentido não era visível aos olhos comuns e que seu tempo não fazia morada em qualquer vilarejo nem era identificável em algum radar.

virginia finzetto

sábado, 31 de março de 2018

ENCANTAMENTO

pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra. 

virginia finzetto