terça-feira, 19 de dezembro de 2017

FELIZ ANO VELHO

Minhas idas ao centro são frequentes. Pego o Praça Ramos fora do horário de pico e vou sentada até o ponto da Xavier de Toledo. Quando eu desço do ônibus, outra viagem se apresenta. Dificilmente fico no presente assim que olho para o Teatro Municipal. Envolvida em reminiscências, pergunto-me como tamanha beleza ainda se conserva como baluarte da história paulistana a despeito de tantos estragos já promovidos ao seu redor, seja pela falta de consciência de programas políticos, que não levam em conta a preservação do nosso patrimônio, seja pela ausência de cidadania dos ignorantes, que deliberadamente depredam e emporcalham nossas ruas.
Sigo em caraminholas, enquanto atravesso o viaduto do Chá em direção à Praça do Patriarca. No vaivém da multidão, de repente, alguém segura meu braço com firmeza. Levo um tremendo susto, pensando em assalto…
Qual deveria ser minha reação diante do avanço da miséria e da violência que aumentou barbaridade? Mas olho melhor para ele: um idoso de expressão bondosa, olhos de íris opacas amareladas, sorrindo com dentes marcados pelo abuso do fumo, face envolta em longa barba alva, prestando muita atenção em mim.
    — Bom dia, menina, você continua bela!
    — Ãhn…?
Rapidamente, minha memória vasculha nos arquivos recônditos imagens da infância e da juventude tentando encontrar alguma que case com a da insólita figura. Para minha surpresa, certa que estou de se tratar de um desconhecido, e já me esquivando com ar de ofensa, ele me chama pelo meu nome completo na língua do pê!
Depois, gargalhando ao ver minha expressão de “cruz credo”, ele prossegue:
    — Ei, Virginia Finzetto, sou eu… o Papai Noel! Não se lembra de mim?
Não faço a mínima ideia de como esse sujeito maluco descobriu meu nome. Isso só pode ter sido, para não fugir do espírito natalino, uma presepada de algum amigo que estaria por ali escondido e rindo da minha cara. Em seguida, o bom velhinho me solta e desaparece rapidinho na contramão.
Oh, céus! Só posso ter enlouquecido em meus delírios, penso.
Então, venho tornar público o caso, para que, quem sabe, possa chegar até ele, agora, todos os pedidos que armazenei desde a época em que passei a ser uma garota incrédula sobre sua real existência.
Diz a lenda que Papai Noel lê, além de cartinhas, o coração de todos os puros. Mesmo assim, resumo minha lista em apenas este desejo:
Xô, 2017!
Dissolva e leve, com a mesma velocidade vertiginosa com a qual você aconteceu, todos os equívocos cometidos covardemente em nome de qualquer divindade.
Assinado:
Eu,
a que prefere apostar em sonhos realizáveis.”

— Feliz ano, velho!
virginia finzetto 

crônica publicada na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com), em 19/11/2017

DILÚVIO


primeiro movimento
dias o sol não aparecia, e no ar um cheiro forte de tempestade se aproximava. Em outras épocas ela não teria dado tanta importância ao fato bastante corriqueiro na aldeia. Hoje, ambas, ela e aldeia, não eram as mesmas. Uma aridez infinita havia invadido suas terras, e o pouco que brotava, dando pequenos frutos, fora profanado, arrancado por quadrilhas de ladrões e legiões de vampiros que invadiam a região todos os dias. E ainda aproveitavam e abusavam dela e dos seus, sem piedade. Seu útero era uma ferida aberta cuspindo tanto sangue, que ela perdeu a noção da diferença entre o que era sequela da violência do que era sua menstruação. Lilith em dilúvio. Ela ainda ovulava.

segundo movimento
Acordara de madrugada banhada em suor e sangue, e sua temperatura teria explodido um termômetro. Teria sido febre ou delírio aquele sonho? Ou ambos? A infecção não cedia, e agora era impossível segurar também a urina do medo, que arrebentava diques no meio da noite...  
outrora da grota que sangra
agora brota lágrima
gota a gota
de angra
.
.
.

Talvez por isso a cena de um dilúvio iminente, segundos antes de acordar. Sonhou que havia uma nave imensa em seu quarto, de proporções irreais. Do alto uma voz lhe dizia que poupasse apenas as suas partes, pares e ímpares, abrindo mão de vizinhos adormecidos em distrações e promiscuidades e de qualquer bandido declarado, isento ou não de paixões. Ela entrou, mas ainda não havia acordado.

terceiro movimento
Aquela voz, cuja imagem não era visível, ordenou que se lacrasse a nave por fora, e ela permaneceu em seu interior. A princípio claustrofóbica, pôs-se a gritar e a se debater entre suas próprias duras e resistentes paredes corporais, enquanto apenas os seus, que a ouviam, não podiam ajudá-la, pois entregues ao comando do alto estavam aceitando ficar trancafiados juntos, em total silêncio e vigília.

quarto movimento
Aos poucos, calma e aceitação vieram acudi-la, ao mesmo tempo em que o barulho do estrondo do dilúvio externo quase lhe arrebentou os tímpanos. A força de todas as águas que caíam trincaram suas defesas naturais e ela se prostrou de joelhos, em oração, enquanto tudo que ficara do lado de fora ia sendo liquidado com a língua de raio de uma justiça que até então ela desconhecia. Coisas que jamais voltaria a encontrar. Choveu quarenta dias e quarenta noites sem parar.

quinto movimento
Ela pressentiu quando a nave se elevou com as águas, e nenhum dano lhe atingiu. A turbulência exterior contrastava com o acomodamento interior de seu corpo. O sangue e a urina haviam se estancado, agora em reconciliação. Mas ainda não podia tocar todas as suas outras partes, em suspensão, que aguardavam sua própria hora. Alisava freneticamente seu monte de Vênus, na intenção de tirar os vestígios de toda invasão a que fora submetida até então. fora já não havia cumes.

sexto movimento
Ela ainda não acordara quando a porta da nave se abriu. Em silêncio soube de súbito que a única maneira de não sentir mais nenhuma dor emocional era deixar que ela doesse até que ela mesma a levasse à origem, única, de todas as outras dores, cuja resposta sempre esteve dentro de si mesma. urgência no encontro do amor verdadeiro, porque atravessar tudo isso, de mãos dadas, é a mais produtiva das parcerias. ...deus gosta!

sétimo movimento
E quando toda água diluviana baixou em segurança, a voz pediu que ela abrisse os olhos, pois haveria de ser por essas janelas que entraria a luz da revelação, conforme a promessa que ouviu:
muitas vezes, e tantas vezes,
quão indivisíveis e indizíveis
são meus amores

como arco-íris, eles se escondem nos céus,
e aparecem aos incrédulos, vez ou outra,
em sete cores


E ela renasceu em segurança e em total comunhão com o que sempre lhe pertencera.

por virginia finzetto


Meu conto na coletânea COLETIVO, publicado pela Scenarium Livros Artesanais, em 2017.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

DOS MEDOS

pior do que o contato com o subterrâneo é ficar alojado nas reentrâncias da parede do precipício. sem poder subir nem descer, acobertado pela covardia, em profundo esquecimento, perde-se o diálogo principal do script. ao final, quando a paralisia das limitações físicas chegam, as asas já não batem por falta de treino. aguarda-se então a vinda da morte vagando-se em distrações. só a misericórdia entende e acolhe o cadastro de futuras tentativas, mas de novo aparece o medo, antigo esconderijo de proteção das feras, que acaba se tornando ele mesmo o imbatível bicho-papão. 


virginia finzetto