sábado, 19 de novembro de 2016

EFÊMERO

que a vida passa, eu sei,

mas escolhi uma que arruma

a minha casa inteira!




virginia finzetto

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

MIRAGEM

Sol febril, marcador em mecha
na linha do horizonte, termômetro azul
miragem que sobe e desce, finge não se pôr
nas águas que movem nossa barca
Rosa dos Ventos de Istambul
pássaros em flecha no alto
apontam Norte-Sul
embaixo, mais um complô
viagem que abarca
Leste-Oeste, eu e tu
é favorável o barlavento
leva nosso refúgio clandestino
sob o casco, raízes, frutos do mar
sobre nós, bússola, estrela Polar
é infindável o firmamento  
sortilégio desse destino


virginia finzetto
in Plural La Barca/junho 2106

terça-feira, 15 de novembro de 2016

NÃO ME SALTAM FÁCEIS

as palavras não me saltam fáceis. nas fôrmas, no forno, talvez elas passem do ponto. fora desandou, e o sono avança. o cão raivoso não late mais. sua boca de baba e espuma agora se ocupa do osso do assalto e seu dono dorme. as palavras não me saltam fáceis porque despertam aos poucos em nova forma. o forno é outro e o tempo não está na receita.

virginia finzetto

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

CRÔNICO

está no índice
remissivo
como doença
de apêndice
extraído
quando penso 

que curou
é recidiva
vem você 

como missiva
e se entrega
e eu
distraída


virginia finzetto

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O QUÊ?

o que investigar sobre a suspeita
o que suspeitar do que odeias
o que odiar em qualquer desfeita
que não o joio que semeias
o que pensar sobre o tempo
o que temporizar desses planos
o que planejar em cada evento
que não a ilusão dos enganos
o que discorrer sobre a morte
o que morrer em cada lance
o que lançar da tua sorte
que não a única chance
o que anotar sobre os estímulos
o que estimular em tua firmeza
o que afirmar entre esses túmulos
que não o mantra da pureza
o que levantar sobre a pauta
o que pautar para a escrita
o que escrever em tua minuta
que não o epitáfio dessa cripta
o que falar sobre os amores
o que amar em tua lembrança
o que lembrar a esses atores
que não a inocência da criança
o que dizer sobre a procura
o que procurar nessa espera
o que esperar de tanta jura
que não o amor de outra esfera




virginia finzetto

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

PAPELARIA

sacanagem
chega de enrolar

me deu um cano 
do diabo!
nesse compasso
nem dá beque
você não é seda 
que se afague

o que resta
são aparas
reciclagem
desse caso
viciado


virginia finzetto

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

TAPAS LITERAIS

das sete artes e das letras
com licença, poética é gastronomia!
tão atenta às minúcias da linguagem
a produzir delícias em antologia
gêneros e aromas exclusivos
em vasto repertório de versificação
versos de minuto a poemas da hora
criados em oficinas de alquimia
há menus fartos e variados
produzidos pelo poeta mestre-cuca
ladeados de boa prosa, sátiras picantes
trocadilhos salteados, salpicados de métrica
a exprimir o que há dentro de nós
como espremer a essência da noz
estrofes de mignon, rimas à pururuca
estrambótico com pitada romântica
papo de anjo, gulodice
os cabelos de Berenice
em sopa ou ensopado
ao sugo, al dente, marinado
da pâtisserie à marmelada
tortas redondilhas, rondó de goiabada
quadra, dístico, terceto
em salada, in brodo, ao pesto
hashis em haicais, barquetes de elegias
ode em neve, espetinhos épicos
soneto de legumes, éclogas com lichias
em declamados pratos líricos
rocambole de frases, epopeia de sabores
que brotam da imaginação
tudo no capricho da linguagem...
iguarias autorais assinadas pelo chefe!



virginia finzetto

domingo, 30 de outubro de 2016

GRAVIDADE


o universo é um parque de diversão

repleto de bacias de algodão doce

formando nuvens e galáxias

enroladas em palitos invisíveis

servidas a buracos negros

enquanto nós somos

só ideias

cromossomos

memórias grudadas 


no pó [de açúcar] estelar

fazendo as delícias

desse festival


[g]astronômico


virginia finzetto

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

JOGO

eu perdoo
porque jogamos
de igual para igual
em campo minado de joio
como opostos elos
do mesmo flagelo
a disputar tortas verdades
de frágeis egos
mas é a plateia a cega que
enquanto esconde suas vergonhas
prefere um a outro


virginia finzetto

in Desaforismos, lançamento em 2017

terça-feira, 18 de outubro de 2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

TATO

Sim, é verdade, eu quero te impressionar. E quero fazer isso com precisão. Quero deixar todas minhas digitais espalmadas na tua pele. Mas não penses em violência, apenas na firmeza que é ter tua bunda grudada por um tempo exato em minhãs mãos...
virginia finzetto

domingo, 9 de outubro de 2016

ANAMNESE

não gosto do morno
mas também não suporto o frio
sequer o muito quente
não passo roupa
e deixo a louça secar ao vento
que também balança a roupa no varal
e tudo fica com cheiro do sol
o queimado do leite derramado
sobre a grelha do fogão
acaricia meu olfato
mas limpar tudo, eu aprecio não
gosto do azedo, do salgado e pouco do amargo
mas doce, ah, o doce... do doce eu gosto muito
como gosto do V
mas amar mesmo eu amo o M
como amei o N, o D, o R, o C...
não sei as voltas que os mundos darão
e quantas vezes na roda dos signos
comi de cada um com amor e tesão
mas sei que giro e não faço contas
e mesmo assim você diz me conhecer?


virginia finzetto

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

LITERAL

Veja bem, marido, não é mais uma DR, esta é literária e literal. Nossa relação era um romance. Não fosse aquele seu enredo erótico, aventura que acabou em policial, eu poderia até relevar como sendo mais uma fantasia minha, outra obra de ficção. Mas logo vi que não era ensaio, pelo tempo que durou a novela. E foi seu papel de canastrão protagonista que jogou a coadjuvante aqui definitivamente de escanteio, e sem prêmio de consolação. Aguentei tanto chifre que minha vida virou uma fábula. De lá pra cá, tudo é teatro, e você pra mim é peça que não se encaixa mais em nenhum ato. Esta dor é crônica, e por mais que eu imagine falas, eu não conto, pois ao final de tanta prosa sobrou nenhuma poesia. Um terror. Você acabou com a nossa história e meu humor... Auto lá, sem mais suspense, chega de farsa! Vamupará com este faz gênero, com esta comédia e ir direto ao desfecho do que foi nossa tragédia.


virginia finzetto

domingo, 25 de setembro de 2016

EMBAIXO COMO EM CIMA


nessa boceta
há um triângulo
das bermudas
sumidouro
em que se afogam
paixões fantasmas
nas idas e vindas
do mar[ejar]
que brotam dos olhos

virginia finzetto

sábado, 10 de setembro de 2016

A DURAS PENAS


que jeito de amar

a vida lhe botou

não lhe faltam pares

a[penas] é

que atrai ímpares

que completam suas asas sem voo

triste sina essa vida de galinha

depois de tanto dar

ter que abdicar:

vai nessa que eu não vou!

[por que isso coube a mim,

não à ema ou ao pinguim?]






virginia finzetto

terça-feira, 6 de setembro de 2016

FÔLEGO


como solfejo
dentro de mim
em retiro
a grande borboleta
infla as asas
assim que te vejo
cada vez que respiro


virginia finzetto

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

[EU] LUTO

queimaram
minha pele
calaram
minha língua
durante anos
sufocaram
minha alma
achei que
havia me livrado
do respirador
artificial
mas vivi
meia vida
para voltarmos
à meia boca


virginia finzetto

terça-feira, 9 de agosto de 2016

SCRIPT

a verdade é que dentro de mim eu sou o que eu quiser e ninguém fica sabendo. mas também reúno personagens que às vezes me escapam. um deles luta eternamente pela união de todos os outros, enquanto aquele em especial me trai. quem olha diz que tá tudo bem, porque não deve ser muito diferente com ninguém. interessante é observar personagens com o mesmo script de amor ou de ódio andando por aí, se apaixonando ou brigando. 

virginia finzetto

sábado, 6 de agosto de 2016

URGÊNCIA



quando fico muito lacônica é sinal de que meu peito lacustre está prestes a irromper como um geiser. enquanto minha boca cala, meus olhos vertem lágrimas quentes. download de registros antigos não processados. urgência do relaxamento pós orgasmo. partirei para outras atualizações da alma, porque tudo é muito alucinado e meu bilhete está quase todo picotado. 

virginia finzetto

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

MUITAS EM MIM

a verdade é que dentro de mim eu sou o que eu quiser e ninguém fica sabendo. mas também reúno personagens que às vezes me escapam. um deles luta eternamente pela união de todos os outros, enquanto aquele em especial me trai. quem olha diz que tá tudo bem, porque não deve ser muito diferente com ninguém. interessante é observar personagens com o mesmo script de amor ou de ódio andando por aí, se apaixonando ou brigando.

virginia finzetto

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

DEUS TEM MEU PRONTUÁRIO

Deus, toda pergunta 
aguarda uma resposta...
que esta venha em boa hora
antes de minha morte, amém!
como aviso ou um sinal
telepático, explícito ou cifrado
deste planeta ou do além
em papel branco ou pautado
telegrama, carta, e-mail
pronta entrega, envelope vai e vem
lacrado, com selo e timbrado
caixa postal, posta-restante
embaixo da porta ou sobre a estante
Deus, recupere a minha história, 
por favor, arrume um meio!
impresso ou gravado
por telefone ou por correio 
um bilhete ou um manual
um post-it no mural
manchete de jornal, rádio, tevê 
livro, revista, encarte
no pen drive ou devedê
Deus, refresque minha memória,
por favor, mande um resgate!
minha ficha biográfica
tudo tridimensional
ressonância magnética
ultrassom, tomografia 
uma imagem sideral
devem estar no prontuário
em ordem alfabética 
com prefácio e epílogo
Deus, por caridade, 
envie uma palavra, afinal:
foi por livre arbítrio 
que escolhi desse catálogo
esta prisão condicional?

virginia finzetto

["Deus tem meu prontuário", poema escolhido para compor a antologia poética do 16° Concurso de Poesias da UFSJ (MG)]

domingo, 24 de julho de 2016

VINGARÃO

eu penso que a humanidade está sofrendo de uma doença autoimune subterrânea que foi se desenvolvendo lentamente, cujos efeitos, hoje, parecem ser desproporcionais, pois todo estrago feito na surdina, que veio acontecendo durante anos, fez parte do estágio de sua própria negação. e agora, que tudo está evidente, nos assusta saber que estamos com os dias contados. e no entanto os desencadeadores ainda tentam dourar todo o mal banalizado com promessas ilusórias e prostituição. apenas os sãos resistem. pequenas e dispersas células despertas, ainda não contaminadas, porém isoladas em impotência, preservam o saber da semente e do vapor, que vingarão em água e promessa de vida carregados que serão para terras férteis. a maioria padece, e ainda dorme.

virginia finzetto

quarta-feira, 20 de julho de 2016

FILHA DA FRUTA

faz o tipo laranja, mas é igual pinha, essa annona squamosa por fora e suculenta por dentro a ofertar areinha ‘al dente’ a quem lhe seduz.  gostosa, mas que difícil é comê-la.  caprichosa, essa enrugada. seu mel dá inveja a varejeiras oferecidas que de soslaio captam zangões a rondar essa rainha, que de tonta não tem nada. serpente de sementes, esse verde é só disfarce, que veneno mesmo ela não tem.  alma sábia igual panela de ferro tangida a fogo por anos para dar bons guloseimas.  feiticeira a consolar carente hipócrita que finge manter ‘lar [não] doce lar’.  e ainda ouve de meretriz a ‘sua filha da puta’ de boca que deveria morder a própria língua toda vez que injuriasse a planta de cuja boa raiz herdou tão majestosa fruta. 

virginia finzetto

quinta-feira, 23 de junho de 2016

CUPIDO

se entregou desprotegida e foi alvo da flecha sem camisinha daquele cupido estúpido que lhe acertou em cheio. agora grávida de ilusão, acorda aturdida tentando recolher meias, sutiã, coração e calcinha, e mais um monte de lembranças espalhadas pelo chão, enquanto aguarda nove luas, nove baforadas de beise, que é o tempo que dura esse mundo etéreo, até a próxima flertada. 

virginia finzetto

quarta-feira, 22 de junho de 2016

TRAVESSIA

difíceis são os dias ensolarados se dentro de mim só chove. eu agora combino com o triste cinzento que cobre a janela e meus olhos, e o peito apertado por essa coisa que tento definir. por que exclamamos ou reclamamos se nada poderá mudar qualquer travessia? serão tão necessárias as anotações do barqueiro em sua fase malabarista tentando equilibrar sentimentos em poesia enquanto palavras alheias a tudo apenas aguardam ocupar um lugar? eu sei que hoje é só mais um dia que me ocuparei de rotinas requentadas e quimeras acalentadas. não é minha imagem inerte no lago que me fascina, mas a voz do retorno do eco que foi lá bater na sua montanha.

virginia finzetto

terça-feira, 21 de junho de 2016

BODAS DE PRATA

Hoje, Nel, se você aqui estivesse, poderíamos nos lembrar de quando decidimos oficializar nossa união. Não era necessário, a gente já tinha resolvido ficar juntos, o Arthur estava a caminho e a gente se amava. Aí você me fez sair da Lapa para irmos assinar nosso contrato no civil lá no cartório de Santo Amaro, porque era mais barato. Eu fui trabalhar de manhã e disse bem alto, na redação: pessoal, eu vou "ali", casar, e já volto! Eu nunca perdi meu bom humor. E assim durou nossa união, que hoje estaria completando bodas de prata, mesmo que a gente não tivesse se separado pelo motivo pelo qual você me deixou. Foi a única vez que me casei no papel, e não me arrependo de nada. Nel, era só para lembrar que eu nunca me esqueci de você. 

virginia finzetto

domingo, 19 de junho de 2016

CORREIO

entreguei-me sem confirmar o cep e fui parar em braços certos, fortes, cheios de pelos e poros vertendo suor, que me agarraram pelos quadris e desfizeram minha embalagem assim como uma criança que abre um presente no dia de aniversário. depois me tascou na boca uma chupada doce feito sorvete que derrete nas bordas até pingar no chão. carimbou minha face de beijos mornos e selou com ar quente do seu ritmo a minha respiração. lentamente me empurrou para o início da cama e me amou sem fim. até agora meu cérebro não tem ideia do paradeiro deste coração que já não é mais meu. 

virginia finzetto

sábado, 11 de junho de 2016

PARADOXO

dê-se por satisfeito
se te enterrarem uma flecha no peito
que penetra fundo é dói
não por acaso em tudo há dois gumes
enquanto um cura, o outro destrói
e para quem não aguenta o intento
vem o suicídio, súbito ou lento
a perseguir a hipotética paz dos cemitérios
nunca se provou, nem mesmo a ciência
que no profundo sono da morte
cada ser [ateu, crente ou cético] leva escondido
um quê de profético e originário
que une a humanidade em um estúpido
e último desejo imaginário:
querer perpetuar a mesma incerteza
de sentir em tudo esses dois lados que rejeita,
mas pelos quais se sofre uma vida inteira...
e parte-se com a lembrança de querer voltar a ver
o sol raiar [mesmo que quadrado]
no dia do juízo final [que não há no calendário]

virginia finzetto

quinta-feira, 12 de maio de 2016

O SILÊNCIO DOS ANJOS

ele ou ela era assim. pairava. até a definição do gênero era difícil, porque queria ser neutro em tudo. desde pequeno na escola deixava de comer na cantina, porque fatalmente deveria pronunciar um nome e isso já era uma escolha. e ele ou ela não conseguia, estava além de seus princípios, julgava-se acima disso. síndrome de anjo, que difícil. deveria servir a quem? aos homens? mas e esse corpo? e essa alma? e esses desejos loucos? eu sou humano, ó dó! só haveria um jeito de resolver isso: morrer, já que havia nascido. nascido aqui, onde cada passo é uma escolha, um lado, um compromisso.

virginia finzetto

segunda-feira, 25 de abril de 2016

ALEGRIA - in "minibiografia das palavras"

ALEGRIA – filhas de Fênix, estas musas têm o mesmo nome, porém foram geradas de pais diferentes. A Alegria da união de Fênix com Carnaval, ao contrário de sua mãe, nasce na sexta e morre nas cinzas. A Alegria da união de Fênix com Cronos já puxou mais o gene paterno, com sua capacidade de nascer e morrer a cada hora, minuto, segundo... volúvel como ela só. Fênix também caiu na 147 “cantata” de Bach, e acabou dando à luz uma obra prima na qual nasceu Alegria em Jesus, para deleite dos Homens. E, de um caso rápido e intenso com Caetano Veloso, nasceram as gêmeas Alegria Alegria. Há outras muitas, que ainda não foram reconhecidas. 

virginia finzetto

sábado, 9 de abril de 2016

[IN]JUSTIÇA

fazendo jus ao significado do dicionário, sigilo e segredo são sinônimos, gêmeos. nasceram  virgens, contudo raramente são enterrados com o selo da santidade, graças às inevitáveis violações praticadas pela fofoca e pelo alvará. no mercado rola ouro tentando salvá-los com emendas, uma espécie de adjetivo pedigree, como total e absoluto, dourando-os assim de falsa autenticidade. na prática poucos sobrevivem e muitos deles morrem literalmente estuprados. 

virginia finzetto

sexta-feira, 8 de abril de 2016

CO[SER]


A AUTOAJUDA DO DESCOMPADECIDO

penso que o antônimo de compaixão deva ser danação, já que somos seres em evolução, aqui ou em outra dimensão, fazemos por merecer. não seria razoável pensar que só porque, por exemplo, um homem de Deus (que crê no julgamento e condenação de sua alma após a morte) rouba dinheiro público, deixando de beneficiar milhões de irmãos, não possa ter uma chance de reparação aqui mesmo. dando uma mãozinha pra Deus, os lesados compassivos podem exigir, em nome da justiça dos homens, usufruir na Terra hoje um pouco do futuro céu, e, em nome da justiça divina, poupar os pecadores na Terra hoje de sua futura danação no inferno. 

virginia finzetto

terça-feira, 5 de abril de 2016

CONTA-GOTAS

quantos lutos eu adiei? essa foi a pergunta que eu fiz quando consultei a cartomante, tão acostumada com outros assuntos. ela embaralhou e deixou as cartas de lado. depois seus olhos doces pousaram sobre os meus. uma alma tão antiga, quiçá de muitas vidas, naquele momento travestida de senhora conselheira. calada, derramei minhas lágrimas, uma a uma, que escorriam como um colar de contas. e eu perdi a conta de quantas se foram aos pares. quando me dei conta, ela me conta que o número passara da conta, e que eu não contasse mais, pois por isso ninguém me levaria em conta. paguei a conta e fiz de conta que deixei tudo pra trás.
virginia finzetto

domingo, 3 de abril de 2016

DOS NÚMEROS


DEMOCRACIA

nasce e acha que há um mundo neutro pela frente. descobre que o nome disso é esperança. cresce vendo os pais lutarem pela sobrevivência, enquanto passam muita necessidade. descobre que o nome disso é meritocracia. aprende o ensino da escola regular regida por parâmetros sem alma. descobre que o nome disso é educação. pratica a mais pura rebeldia que brota de seu coração. descobre que o nome disso é desajuste social. cai no vício de todo tipo de droga lícita e ilícita. descobre que o nome disso é contravenção. panfleta o mundo com questionamentos sobre todas as desigualdades. descobre que o nome disso é poder, de autoria patenteada. apanha por conquistar direitos que diminuam as diferenças sociais em defesa das minorias. descobre que o nome disso é a violência da polícia mandada. perde a esperança e ganha consciência. descobre que o nome disso é democracia. 

virginia finzetto

sexta-feira, 1 de abril de 2016

GALÁCTICO


PRIMEIRO DE ABRIL

às vezes eu acordo e me vem aquele momento de total êxtase por ter descoberto a fórmula da felicidade. e segundos depois, tudo me escapa, e os números e as letras iniciais começam a mudar de forma e a ganhar outra configuração e, quando eu me dou conta, a magia me fugiu e restou um murmúrio, um franzir do cenho, seguido de inúmeras ginásticas faciais para acompanhar a torrente elétrica do pensamento tentando capturar a explicação para o nada óbvio. voltas e voltas das ideias com o objetivo de escapar ao medíocre, do absolutamente confuso e irracional desejo de apreensão do sagrado, da mais pura e inocente aproximação do núcleo... do... do... do... tsc... e o resto do dia fica assim, totalmente profano. sigo comendo paçoquinha e esperando aquele convite que não chega.

virginia finzetto

domingo, 27 de março de 2016

CURA

eu era pequena, menos de 1 metro e menos de 7 anos. cabelo liso e curto. conversava com as plantas. vivia na rua de terra, brincando com os moleques. pernas e braços machucados dos tombos da bicicleta emprestada. e um dia eu amassei as míni flores da planta rasteira e daninha que brotava na calçada e coloquei o caldo na impinge do joelho. e sei que proferi algumas palavras, e aquilo curou. e me lembro que minha avó curou as outras coceiras apenas com amor e gestos delicados de vai e vem sobre as feridas usando uma folhinha de oliveira do quintal embebida em azeite. e hoje eu gostaria de resgatar essa inocência para curar todos os homens que querem tudo apenas por não terem nada a dar além do medo. e aproveitar e proferir uma meia dúzia de palavrões mágicos para exorcizar toda essa sujeira. 

virginia finzetto

sábado, 19 de março de 2016

HUMILDADE


O SILÊNCIO DOS ANJOS

ele ou ela era assim. pairava. até a definição do gênero era difícil, porque queria ser neutro em tudo. desde pequeno na escola deixava de comer na cantina, porque fatalmente deveria pronunciar um nome e isso já era uma escolha. e ele ou ela não conseguia, estava além de seus princípios, julgava-se acima disso. síndrome de anjo, que difícil. deveria servir a quem? aos homens? mas e esse corpo? e essa alma? e esses desejos loucos? eu sou humano, ó dó! só haveria um jeito de resolver isso: morrer, já que havia nascido. nascido aqui, onde cada passo é uma escolha, um lado, um compromisso. 

virginia finzetto

quarta-feira, 16 de março de 2016

BIOGRAFIA


ÍNTIM[AÇÃO]

havia tanto assunto ainda para falar. mas ela preferiu se sentar na varanda e deixá-lo ir. a poeira da estrada levantada pelos pneus da van que partiu apressada chegou e se misturou às suas lágrimas -- rompantes do engasgo da frustração que lhe subiu aos olhos -- agora vertendo avermelhadas. não foi fácil deixá-lo ir. não era o que ela queria. leve de menos, desproporcional demais, torto o bastante. queria encrenca. essa felicidade morna dos dias decorados de cor e salteado nunca estivera em seus planos. quando ela viu, após algumas horas, a poeira de novo aumentando e o vulto se aproximando, ainda pensou em uma chance, mínima. mas ele voltou, esticou a mão e ela assinou, dessa vez sem reclamar. afinal, a pena, o papel, o tranco e o trabuco convencem qualquer mulher a abandonar uma ilusãozinha besta. 

virginia finzetto

DEUS E O DIABO ÀS GARGALHADAS


quarta-feira, 9 de março de 2016

CRENÇAS

hoje o armário não quis fechar de jeito nenhum. a mínima dose de coragem deixou uma fresta aberta e por ali vi o lote de crenças penduradas. encarei parte delas, as mais usadas que, de tão usadas, viraram hábitos [e aí eu entendi o provérbio 'o hábito faz o monge']. vi todas acompanhadas de açoites e vendas, grandes formas usadas pelo capitão do mato para destronar o rei. peguei uma delas, tirei-a do cabide e a deixei sobre a mesa. como eu pude acreditar por tanto tempo a ponto de achar que bastava não usá-la mais para eu me livrar de seu assédio? deixei que ela voltasse para o armário, já destituída de seu domínio, para, assim, contaminar o lote inteiro por meio de vasos comunicantes. 

virginia finzetto

terça-feira, 8 de março de 2016

BINAH - HOCKMAH

sua vaidade exposta era fruto lascivo de uma paixão recolhida. mendicava alta tensão em toda rede com o intuito de se abastecer, mas provava somente de energia artificial. era mais sugada do que previa. de súbito, deu-se conta da beleza que dispensa trampolim. fez o mergulho que a levou às alturas, lugar onde fica a fonte luminosa de raios que não servem para acender fogo. raios frios que derretem a espessa camada de gelo sem queimar. e todo o processo se realizou a contento, provando ser próprio das mulheres a sabedoria e o entendimento. 

virginia finzetto

segunda-feira, 7 de março de 2016

FÊNIX

estranho seria se não houvesse a própria morte para os que estão no topo da cadeia alimentar. até estes serão comidos, mesmo que tardiamente, pelos vermes ou urubus no cumprimento de suas não condecoradas, porém honradas, tarefas de saneadores básicos da natureza. mas não a mitológica ave fênix, que se auto crema e ressuscita de suas cinzas, pois a ela coube a sentença de nunca perecer para sempre, engatando um no outro longos períodos de vida. ou seremos mortos ou seremos ressuscitados ou ambos em diferentes planos de realidade. mas não ter ninguém para me comer exatamente agora é o fim da picada. 

virginia finzetto

domingo, 6 de março de 2016

SINTONIA

abaixou os olhos, mas continuou a ouvir cada letra atravessando o túnel auditivo com pisos firmes e ritmados até que, ao final do pavilhão, se unissem para formar a palavra que fazia sentido. compreendeu uma a uma das palavras em separado. depois a ordem de cada palavra na frase. e, por fim, enquanto uma lágrima quente escorria até a metade de sua face, abraçou a mensagem de viver a dor do outro como se fosse sua.

virginia finzetto 

quinta-feira, 3 de março de 2016

HIROITO DE MORAES JOANIDES

Eu conheci Hiroito de Moraes Joanides (*Morretes 1936 +São Paulo1992) nos finais dos anos 1970, em nosso circuito da madrugada pelos bares e cinemas, entre o Belas Artes, Riviera e o Ponto Chic do Largo Paissandu, todo final de semana, para vender de mão em mão o tabloide de esquerda Movimento. O Rei da Boca do Lixo, como era conhecido, sempre aparecia com sua malinha cheia de livros, o Boca do Lixo, título de sua autoria, que viraria depois o filme "Boca”, do cineasta Flávio Frederico, em 2010. Veio-me hoje a imagem dele, baixinho, simples, com aqueles óculos com lentes de fundo de garrafa, ex-bandido e simpatizante da nossa tchurma de estudantes revolucionários. Bons tempos em que a gente só tinha medo da repressão. 

virginia finzetto

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

DECOR

Então era ditadura braba, e eu ainda uma criança. Havia um autoritarismo ferrado, do hino nacional, à entrada da escola, à rigidez da maioria dos mestres em sala de aula. E um professor de Português, desgraçado, que seguiu tudo ao pé da letra, queria que eu decorasse um poema imenso e difícil. E era para eu declamar para os colegas, valendo nota. Travei. Travei para sempre. Nunca mais consegui decorar nada, nem textos nem fórmulas nem datas nem sequer o que eu escrevi durante toda minha vida. Passei a odiar o tal homem, a odiar o tal poema, a odiar o tal poeta. Hoje, por acaso, estou aqui com I-Juca Pirama na minha frente, num esforço grande para chegar até o fim das estrofes bem construídas. Talvez assim eu possa me curar e fazer as pazes com o Gonçalves, esse grande escritor jornalista maranhense folclorista indianista romântico nacionalista [e que veio me confessar, ao pé do ouvido, que odiou o que aquele carrasco fez comigo]. 

virginia finzetto

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O ROMANCE DE DEUS

dizer que este mundo é um ovo é uma redundância. nunca achei mesmo que fosse uma esfera com todos os raios, que o partam de onde partam, ó raios, todos certinhos e idênticos conectando a periferia ao centro. mas é que esse ovo é de lagartixa, ou até menor do que imaginamos. as conexões entre fatos e pessoas formando essa trama me diz que o acaso é outro nome de um romance já escrito por deus ou é tanta coincidência do diabo que até deus se surpreende. eu poderia estar aqui me sentindo usada pelo satã, mas prefiro acreditar que o caso foi do acaso, e que este, por sua vez, já é obra de uma das tremendas coincidências criadas por deus. 

virginia finzetto

DOSES E DOSES

eu acredito na homeopatia, não porque sou crente, mas porque vejo resultados em mim na maneira como ela cura algumas doenças do corpo, da alma e do espírito, não necessariamente nessa ordem. porém, na área dos relacionamentos, as verdades que nos chegam em pequenas doses, de cicuta e de veneno de cobra, provocam efeitos colaterais dolorosos em meus corpos, e, em alguns casos, definitivos, como a quebra de confiança. está certo que a luz da verdade absoluta pode nos cegar, é preciso ir com cuidado no percurso do caminho espiritual. mas confundir isso com a ordinariedade mundana, dúbia por natureza, a perplexidade se traduz na minha cara de pamonha. desilusão é boa, mas eu detesto quando dizem que minha avó subiu no telhado. me mate de dor de uma vez, porque o sofrimento é intenso, mas tem seu mérito pela magnitude. nesse caso, quero alopatia na veia. 

virginia finzetto

sábado, 27 de fevereiro de 2016

ESPIANDO A ALMA ALHEIA


Parecia ser um jantar informal. Uma conversa entre um homem e uma mulher. Fiquei observando, enquanto bebericava aguardando meu pedido, como ele a triturava com os olhos, enquanto suas mãos dobravam lentamente a toalha de papel fazendo um movimento de fole de sanfona em direção a ela. De onde eu estava não era possível ouvir a conversa. Como se eu estivesse vendo um filme de cinema mudo, comecei a legendar mentalmente a cena: [ela] tá bom, você quer ouvir mesmo a verdade? [ele] sim, foi pra isso que viemos aqui conversar. [ela] eu não transei com ele (silêncio profundo) ok, transei... mas não foi bom... (pausa rápida) tá, eu transei sim e foi ótimo! [ele] sua (primeira dobra) filha (segunda dobra) de (terceira dobra) uma (quarta dobra) grandessíssima (quinta dobra) ... (sexta dobra)... FIM (sétima dobra). Despertei com a voz do garçom perguntando "posso servi-la?", enquanto flagrava o tal casal unir as mãos sobre a mesa e tascar um longo beijo. Tsc, já não se faz mais realidade como antigamente, pensei. 

virginia finzetto

sábado, 20 de fevereiro de 2016

FINITUDE

não me dói tanto pensar que sou um nada diante do imenso universo de galáxias inofensivas. o que não consegue se aquietar no quadrilátero superior do meu tórax, mais precisamente no quadrante esquerdo, é essa insignificância de uma vida diante da impunidade do mal praticado pelo homem, que meus olhos se acostumaram a ver. se é maior o índice de suicídio nos países do primeiro mundo, onde os valores de consciência são mais elevados que a busca do lucro fácil, talvez eu preferisse viver lá, porque entre todos os "ídios", de homicídios a genocídios, que nesta encarnação minha alma encara penalizada, quem sabe tirar minha própria vida não fosse uma opção desonesta, a ter que me sujeitar a uma sina que não é de minha escolha; a sina da impotência frente à crueldade que só os sensíveis podem avaliar como a mais dolorosa desta finitude de vida. 

virginia finzetto

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

LEMBRANÇAS

Não era o relógio que media o tempo. Era a distância do olhar sobre aquele tapete esgarçado. Do alto da escadaria, ela identificava ilhas intactas de cores em esmirna e preenchia com a imaginação o desgastado dos espaços vazios da entretela. Com o passar dos anos, a acuidade visual não era a mesma. De perto, ninguém conseguia enxergar o propósito do desenho inicial, como se não tivesse qualquer conexão entre os esparsos blocos de lã tecida da tapeçaria. Apenas para ela havia ali um permanente retrato e uma história eterna.  

virginia finzetto




sábado, 30 de janeiro de 2016

NÁUFRAGA DA REDE

Acordei na praia de uma ilha completamente deserta. Náufraga. Tudo acontece rapidamente. Avisto uma garrafa boiando em minha direção. Encalha na areia. Do gargalo enorme sai um celular. Há sinal, gps e crédito vitalício. Chamo seu número. "Cheguei...". Nenhuma resposta. Entro no Face, que fica a toda hora lembrando datas, enquanto meus cabelos me cobrem, minha roupa se desgasta, minhas unhas crescem, e eu mato a fome com algas. 

virginia finzetto



DESPEDIDA

As finalizações eram difíceis para ela. Talvez porque a linha e a agulha, que durante o trajeto abriram e preencheram tantos obstáculos, agora nesse ponto, quase final, nessa especial proximidade espacial, já não quisessem mais ser duas. E não havia distância para um passo nem um acabamento. Seria um corte fatal. Ambas separadas e o nó só na garganta. 

 virginia finzetto


domingo, 24 de janeiro de 2016

ACABOU

E se você entendeu mesmo, e não apenas ouviu, é momento do silêncio. Porque a disputa é para quem adia. E se, pelo contrário, o dia anoitece, é para que venha o manto da proteção, para que não se desvie mais com as distrações da protelação. Ora, pois a hora é de acolher sem julgar. Toda resposta chega, se há pureza nas intenções. 

virginia finzetto


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

VIAJAR NA VIAGEM

Eu adoro viajar de trem. Infelizmente, como no Brasil JK fez o favor de não dar valor ao desenvolvimento desse meio de transporte, então a gente se delicia quando pode ir à Europa. Hoje, no meu mundo ideal, eu entraria sozinha em um deles, os de alta velocidade, e iria seguindo até resolver parar em alguma cidade, depois pegaria outro e assim por diante, até ficar satisfeita (não digo enjoada, porque eu não me enjoo). Não tem coisa melhor, digo, um ambiente tão propício, para fazer uma viagem dentro de outra viagem. 

virginia finzetto


A REALIDADE DO REBELDE

momentum filosóficum (dá pano pra manga): em nossa História, desde que o homem (homem e mulher) perdeu sua conexão com o simbólico, com o divino, passou a seguir um "ídolo moral" e suas regras, que sempre servem aos interesses de um grupo que está no poder, mas que, dependendo do sistema político, pode ser interpretado segundo os interesses individuais dessa sociedade (e cada vez em menores grupos, até o andar caótico do desejo individual e sua gana só pelos direitos, sem reconhecer deveres). só os rebeldes seguem e amam quando reconhecem seu único Senhor em si mesmo. mas isso é de um rigor que não se compara a qualquer restrição imposta ou moralidade, mas de uma presença Real neste mundo. 

virginia finzetto